Itaú Cultural, – São Paulo, 2016.
Vinte e três fotografias e um vídeo do projeto Cabanagem fizeram parte da exposição Arquivo Ex Machina: Arquivo e Identidade na América Latina.
Curadores: Claudí Carreras e Iatã Cannabrava
1.
Reinventando conceitos se chega a um novo lugar. Ressignificando arquivos, imagens e pontos de vis- ta, a exposição Arquivo Ex Machina e o IV Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo – realizados pelo Itaú Cultural – promovem um espaço de discussão e construção das imagens que retratam e traduzem um território: a América Latina, cada vez mais próxima do continente real, não mais um mundo novo idealizado.
Compõem a mostra dez conjuntos de imagens de arquivos/artistas, representações de nuances da história da vasta região e de seus múltiplos habitantes. Para resumir os sentidos dessa diversidade, uma solução mágica – esse deus do teatro grego, ex machina – foi chamada à cena.
Nas imagens de arquivos, temas como revoltas populares, criminalidade, escravidão, extermínio indígena e repressão política. Fantasmas que insistem em existir, sempre acuados pelo olhar crítico da arte. Sobressaem no conjunto o tema da identidade – seja ela real ou alegórica, imposta ou natural – e sua constante elabora- ção. Outro dado relevante é a maturidade que o pensar e o fazer a fotografia latino-americana adquiriram nestes anos de fórum.
Convidamos o visitante a ver com os próprios olhos a potência desse retrato de nosso continente. A esperan- ça de um mundo novo.
Itaú Cultural
2.
Esta exposição não trata apenas de rever a ideia de América Latina proposta por arquivos elaborados em processos cheios de vícios coloniais. Arquivo Ex Machina revisita, de maneira contundente, os critérios que denominam aquilo que definimos como local de guarda de um conjunto de indícios documentais.
Quem define? Quem nomeia? Para quem define? Para quem nomeia?
A exposição aponta ainda o dedo para outros formatos que podem ser inventados e nomeados como arquivo.
A América Latina, incluindo o luso-Brasil, construiu sua história sobre paradigmas que interessavam muito mais àqueles que falavam do outro do que aos que tentavam falar de si mesmos.
Cabe no escopo do IV Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo a tarefa de escolher outras cápsulas, para outros futuros. Ou de renomear velhas cápsulas, de futuros antigos.
Se, por um lado, nenhuma das cápsulas lançadas em décadas passadas sequer esbarrou no presente, por outro lado, no território desta mostra, elas servem para
dizer ao índio mapuche [população autóctone do sul do Chile e da Argentina] que – como definiu Cesare Lombroso [criador da antropologia criminal] – crimino- so ou suspeito é aquele que o aparenta ser nos arquivos que solidificam o status quo, o estado das coisas, e não o status quae sera tamen, uma liberdade criativa.
Como método de trabalho para a consolidação de Arquivo Ex Machina, fomos ao encontro de pesqui- sadores, curadores, colecionadores e artistas envolvi- dos com material de arquivo. De início, interessava-nos qualquer releitura dos paradigmas tradicionais. Poste- riormente, estabelecemos três linhas de pesquisa: uma nova forma de olhar velhos arquivos, a manipulação dos sais de prata e o documento inventado.
Claudi Carreras e Iatã Cannabrava
[O título da exposição deriva da expressão latina deus ex ma- china. Criada no teatro antigo grego, definia a entrada em cena de um deus cuja missão era solucionar de forma arbitrária um impasse vivido pelos personagens. Por extensão, virou reso- lução inverossímil para um problema dramático. Em sentido figurado, algo que inesperadamente propicia uma solução para uma situação difícil.]
3.
É possível criar documentos para interpretar o passado, ainda que sejam documentos contemporâneos.
A reconstrução da passagem de um furacão histórico quase desconhecido e não retratado: a Revolta dos Cabanos, na selva ao norte do Brasil. O trabalho mostra que, em qualquer tempo – ontem, hoje e amanhã –, o abandono dos dirigentes e dos trópicos gera ódio e violência.
4.
Caros Iatã e Claudi, tudo bem?
Dentre toda a loucura que está sendo o começo deste ano, será que consigo responder com clareza a pergunta de vocês?
Como cheguei no Cabanagem? Como cheguei no Cabanagem… bom… aqui em casa está começando a festa de aniversário de quarenta anos da Karlla e, entre a música, os amigos e um copo de cerveja, vou tentar contar como tudo se deu.
Parece-me uma situação apropriada para explicar um projeto que tenta investigar – fotograficamente – um momento de revolução de nossa história e suas ondas que ainda chacoalham o presente.
Acho que o Cabanagem é sobre isto: ver como as on- das do passado ainda movimentam o presente. O que daquilo que sempre existiu em nossa história continua a existir. Pense na imagem de uma espiral: em diferentes momentos, passamos sempre sobre os mesmos pon- tos. É bom olhar para eles, compreender quão fundo eles vão, em qual camada de nosso substrato está o começo de tudo. Isto se for possível chegar lá.
Talvez um projeto de investigação como esse seja uma boa imagem para ajudar a (re)pensar, (re)significar o que é pensar a nossa história. O que é a narrativa histórica? Se a história que fica é a dos vencedores e os revolucionários nunca venceram no Brasil, qual é a narrativa que se construiu dos muitos levantes, revoltas, revoluções que aqui ocorreram?
Quando ocorreram as manifestações de 2013, eu havia acabado de voltar ao Brasil, e tive vontade de pesquisar nossa história e ver em que outros momentos este povo – dito pacífico, acolhedor, amoroso – se rebelou contra os poderes instituídos. Para a minha surpresa, a lista era mui- to maior do que eu lembrava de meus tempos de escola.
Muito maior! E não era só isso, havia a Cabanagem, uma revolução que, além de ter sido bem-sucedida por um tempo – afinal, os revolucionários, após matarem o governador (!), conquistaram e mantiveram o poder no
Grão-Pará por mais de um ano –, causou a morte de mais de 30 mil pessoas! Como seria possível que eu não soubesse nada dela? Fiquei espantado. Quanto mais lia, mais me interessava. Foi esse o começo de tudo.
A partir daí, o processo foi de ler muito sobre a Cabanagem e, nessas leituras, conheci a professora Magda Ricci da Universidade Federal do Pará (UFPA), que é especialista no assunto. Além de outros textos sobre a Cabanagem, ela me introduziu o conceito de microhistória e as obras de Carlo Ginzburg e de Natalie Davies. Deles veio a ideia de que existem outras narrativas que não as dos gran- des feitos, dos grandes personagens, uma outra forma de olhar a “história”. Foi com tudo isso na cabeça que criei, ainda aqui em São Paulo, uma lista de fotografias possíveis para o projeto, uma lista de lugares para ir. Esse roteiro serviu basicamente para permitir que o acaso – esse fator que sempre considerei como o preponderante na vida – fizesse a sua parte. É assim que trabalho em todos os meus projetos: as ideias servem somente para me colocar no lugar em que as imagens se oferecerão a mim.
Dessa forma, fui ao Pará, vocês sabem, duas vezes. A primeira, por 15 dias, para aprofundar a pesquisa e testar minhas hipóteses e a segunda, algum tempo depois, por dois meses. O intervalo foi muito importante para olhar para/pensar sobre o que havia produzido. Foram essenciais, também, as conversas que tivemos, pois me ajudaram a ver o que havia no material.
Percorrer Belém e o interior do Pará buscando rastros, traços e vestígios de algo de que quase nada sobrou: uma ideia, um pensamento, 30 mil mortes…
Depois de um ano editando as fotos para o livro – vocês também sabem bem desse processo! – e chegando na seleção final, acredito que o Cabanagem, com suas imagens que se repetem – burocracia, violência, religião, natureza, desgaste, passagens –, não é um livro sobre um fato histórico em si, mas uma ferramenta para ajudar a pensar o presente. Acho que, como artista, é isso que posso oferecer: uma mola propulsora de pensamentos. Nenhuma explicação.
Fez sentido? Respondi?
Abraços fortes, André